Enzo Krieger
O documentário “A Força do Gigante” é centrado na conquista vascaína do Sul-Americano de 1948, a partir de depoimentos de alvinegros ilustres como Áurea Martins, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e Sérgio Cabral (falecido este ano), e da narração de Evaldo José, que reproduz transmissões originais perdidas num incêndio. O jornalista, escritor e documentarista Marco Antonio Rocha destaca a importância do audiovisual no reconhecimento da memória esportiva e na luta contra o racismo. A Resposta Histórica, quando o Vasco da Gama, em 1924, se recusou a expulsar os negros do time e abriu mão de disputar a nova liga que surgia no Rio de Janeiro, é, para Marco Antonio, o maior troféu do time: “É um título que nenhum outro clube do mundo ganhou”.
Em entrevista no Departamento de Comunicação da PUC-Rio, após a palestra “O futebol que construímos: uma tabela entre memória e futuro”, ele destacou a necessidade de se conhecer a história da bola: “É muito importante essa valorização das lembranças, para entendermos como chegamos aqui”.
Mais que um filme sobre a história de uma conquista do Vasco, o documentário mostra o papel do clube na luta contra o racismo. Qual é o impacto do futebol, do esporte e do audiovisual nessa frente?
O Vinicius Júnior (jogador brasileiro do Real Madrid, da Espanha) sofre um massacre rodada após rodada, e ocasionalmente entre as partidas, apenas por se revoltar contra o racismo que sofre. Às vezes, ele parece culpado de se revoltar contra um crime que sofre, só porque ele defende uma luta por uma condição de igualdade, que deveria ser óbvia. Esse documentário se propõe a levantar essa bola, assim como da cultura e da importância de São Januário para o cenário brasileiro da época. O maior troféu que o Vasco tem é a luta contra o racismo. Eu já conversei com vários vascaínos de mais idade e muitos deles são unânimes, dizem que não foi a Libertadores, não foi o Sul-Americano: o maior troféu que o Vasco tem é a Resposta Histórica, que é a recusa a expulsar os negros do time. É um título que nenhum outro clube do mundo ganhou. O atual campeão da Libertadores é o Fluminense, mas quando tiver a próxima final, não será mais. Agora, o primeiro campeão continental do mundo é o Vasco, e essa luta contra o racismo, que o clube levou tão à frente, são glórias que ninguém tira. O Vasco pode ir para a 15ª divisão no campeonato carioca, e vai continuar com esse título.
Qual foi a sensação de entrevistar torcedores ilustres do Vasco, como Antonio Pitanga, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Sérgio Cabral e Áurea Martins?
Uma honra. Entrevistar o Sérgio Cabral foi uma das gigantes de glórias da minha carreira como jornalista. Martinho, Áurea Martins… Eu comprei uma camisa Retrô do Vasco, do título da Libertadores, e todos autografaram. Eu tenho esse troféu. O Paulinho foi muito difícil de conseguir entrevistar, foram meses tentando, e passei duas noites em claro antes de ir à casa dele gravar. Porque o Paulinho da Viola, para mim, é quase uma entidade, uma coisa sagrada.
Como foi produzir “A Força do Gigante”, encontrar bastidores e personagens para contar uma história que, apesar de relevante, não é tão conhecida?
Na verdade, esses personagens nasceram da dificuldade de fazer o filme, porque não tinha nada de televisão que cobrisse aquele campeonato. Sobre emissoras de rádio, o Oduvaldo Cozzi (locutor esportivo) foi fazer o jogo pela Mayrink Veiga, mas um incêndio na rádio queimou tudo. A ideia de ter o Evaldo José dando vida àqueles lances veio desse obstáculo. Então, esse filme nasceu, na verdade, na dificuldade de não se ter. Se fizermos hoje um documentário sobre a Libertadores de 1998 (em que o Vasco foi campeão), tudo está gravado, documentado – é mole de fazer. Este deu trabalho, porque não tinha nada. O plano foi resgatar a memória através das lembranças do torcedor, chamar a falar essas pessoas conhecidas, relevantes para a cultura, porque viram aquele time surgindo e ganhando aquele campeonato.
Você falou das gravações do Sul-Americano de 1948, que foram perdidas num incêndio. De onde veio a ideia de reproduzir a narração, e como foi a participação do narrador Evaldo José?
O rádio era o meio mais importante da época. Eu cresci ouvindo futebol na rádio. Meu filho não acompanha jogos em rádio, não faz parte da cultura dele, mas fazia da minha. Ver um jogo na televisão era um negócio completamente fora do normal, absurdo. Hoje, tem campeonato do Vietnã, 15ª divisão da Arábia Saudita… Contar a história da Sul-Americana de 1948 através do rádio é muito natural. O Evaldo veio dessa característica dele gravar, a voz mais empostada, e ele comprou a ideia na hora, não quis cachê, nada.
E ele é vascaíno?
Não, botafoguense, mas adorou o projeto.
Como o audiovisual pode impulsionar a memória do futebol?
Hoje, há tantos streamings, tantos canais do YouTube, tantas formas de transmitir. Distribuir e eternizar o conteúdo está fácil. O meu filme está no YouTube, por exemplo. Qualquer pessoa pode ver de graça. É muito importante essa valorização da memória, para entendermos como nós chegamos até aqui. Como se sabe que o Brasil é um país tão respeitado no mundo por causa do futebol, e ainda é? Apesar dos pesares, é importante saber essa história. Eu brinco com o meu filho e os amigos dele; quando é flamenguista, digo ‘cara, o futebol não foi inventado em 2019. Começou lá atrás’. O Flamengo passou por vários momentos de dificuldade, o Vasco já passou por períodos muito piores que hoje, até fases melhores. É tudo uma construção de história.
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