Enzo Krieger, Malu Carvalho e João Marcello Santos
A fuga do tradicional, mantendo o repertório informativo, é marca da piauí, uma das mais prestigiadas revistas do país. “Desde a largada, a revista tem liberdade de não ser convencional. É um pouco botafoguense, no sentido de ser meio cética em relação a tudo, não achar que o grande político é um herói e nem achar que o grande canalha é só um canalha. É um pessimismo divertido, misturado com uma certa ironia”, afirmou o fundador da revista, o documentarista – alvinegro – João Moreira Salles, durante o seminário “A revista piauí em três tempos”, organizado pelo Laboratório de Jornalismo do Departamento de Comunicação da PUC-Rio no dia 7 de novembro.
Estudantes lotaram o auditório K102 para ouvir Moreira Salles, professor licenciado do Departamento, e profissionais da equipe da piauí em uma conversa sobre jornalismo, reportagem e checagem. A sessão foi aberta pelo reitor da Universidade, padre Anderson Antonio Pedroso, e pelo diretor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, Arthur Ituassu.
Na primeira mesa, Moreira Salles e o editor-executivo, Daniel Bergamasco, apresentaram um panorama sobre o passado, o presente e o futuro do periódico, com mediação do professor de Jornalismo Cultural da PUC-Rio, escritor e jornalista da Globo News, Arthur Dapieve. A mistura de elementos narrativos e linguísticos diversificados configuram um produto único nos meios jornalístico e literário nacionais. Na revista mensal, que circula desde outubro de 2006, não há editorias fixas, como Economia, Política, Cultura ou Meio Ambiente. E as reportagens levam de três a seis meses para serem produzidas.
“Para isso se materializar, dizíamos que a revista tinha que ser mais líquida do que sólida, no sentido que ela podia mudar a cada novo exemplar, ser muito diferente da edição anterior”, explicou Moreira Salles.
Piauí nasceu de uma conversa com o jornalista Marcos Sá Corrêa, ex-diretor de Redação do Jornal do Brasil, sobre criar no país um veículo similar à New Yorker, com características do jornalismo literário; reportagens longas, com tensão narrativa, expandindo o jornalismo factual ligado aos centros de poder:
“Ela veio da necessidade de se comunicar com o país inteiro. O eixo Rio-São Paulo-Brasília traz mais notícias no dia a dia, mas o Brasil como um todo tem informações e histórias que merecem ser contadas”, destacou o fundador. “Há um esforço muito grande da revista de não cobrir apenas esses três eixos, e o Piauí tem essa característica. Talvez, dos estados brasileiros, seja aquele de que temos uma ideia menos clara. Quando pensamos em Bahia, existe uma construção imaginária que habita a cabeça de cada brasileiro. A mesma coisa para Pernambuco, Amazonas, Rio Grande do Sul. O Piauí é meio misterioso, então piauí era um nome que tirava do eixo. Esta foi a primeira razão para a escolha do nome”.
A revista quase foi Província, Equador Sul, Lontra, Polvo, Rocambole, Trópicos, Esquina, Zigue-Zague, Buzina, Vira-Lata, Atlântida, Bricabraque ou Coruja. Também foi cogitado chamar as publicações pelo mês – Revista de Janeiro, de Fevereiro, de Abril – ideia descartada por dificultar estabelecer e consolidar uma nova marca. Ficou Piauí, uma palavra cheia de vogais. “Gilberto Freyre dizia que, nos países frios, as línguas faladas são cheias de consoantes; elas saem espetando a boca: são espinhos. E idiomas falados nos países solares possuem muitas vogais. A vogal sai redonda, macia, gostosa da boca. E que, portanto, os idiomas dos trópicos são mais gentis, mais suaves, gostosos. Achava essa ideia muito simpática”, contou Moreira Salles, ressaltando que a tese não se sustenta: “Depois Branca, minha mulher, uma linguista, me falou que isso é uma idiotice absoluta, é completamente furado do ponto de vista linguístico. Mas continua sendo bonito. E o fato de ser um nome estranho para uma revista era uma boa ideia”.
Se uma lenda serviu de estímulo para a escolha do nome, nada do que se publica no veículo passa sem o minucioso crivo de checadores, que verifica cada informação, data, grafia. Piauí é um raro veículo do país com equipe de checagem. “É absolutamente fundamental para nós. E isso é jornalismo: é a apuração, a escrita, a edição, a revisão e a checagem, e nenhuma dessas etapas é menos importante que a outra”, ressaltou sobre a “República Checa”, apelido interno do time de checagem.
A ironia é um dos traços mais marcantes do periódico, manifestado nas reportagens, crônicas, críticas, charges e nas capas, produções à parte, comunicam o que acontece no mundo. Isso envolve desafios, como a possibilidade de interpretações equivocadas, especialmente na internet. Arthur Dapieve comentou sobre esse aspecto:
“A ironia depende de um grau de letramento que ficou suplantado pela imediatez da leitura. Ironia está naquilo que, em francês, quer dizer ‘segundo grau da leitura’. É preciso entender o texto e o subtexto. Hoje as pessoas talvez não tenham tempo para ler o subtexto. Então, acho que não é uma questão geracional, no sentido de que é um problema da juventude. Eu vejo muita gente que não é jovem e não entende ironia”.
A segunda mesa contou com a participação dos checadores Gilberto Porcidônio – formado em Jornalismo na PUC-Rio -, Marcella Ramos e João Felipe Carvalho, que com a produtora-executiva, Raquel Zangrandi, detalharam aos estudantes os procedimentos de checagem. Essa etapa acontece após um longo processo de edição das matérias, geralmente extensas e detalhadas. Em seguida, o diretor André Petry e os jornalistas ex-estagiários Yasmin Santos e Thallys Braga explicaram como começar a escrever para a revista. O encontro mobilizou estudantes, que fizeram perguntas e aprenderam mais sobre a profissão e se divertiram com os bastidores da rotina da redação.
A verificação é diferente da que é feita por agências no cotidiano e por jornais em época de eleição, por exemplo. Depois de passarem pelo editor, os textos são enviados à checadora Marcella Ramos. A jornalista identifica todas as informações que precisarão ser checadas e destaca com cores diferentes aquelas que exigem olhares distintos para a etapa prática da checagem, com pesquisa e consulta de fontes.
Marcella busca confirmar cada informação em outra fonte além da mencionada. Esse processo pode levar de horas a dias de trabalho e pesquisa. Alguns fatos são facilmente verificáveis, como dados, números, idades e grafia de palavras. Outros exigem pesquisas mais profundas, para chegar à fonte original da informação. Depois, ainda há uma checagem de coesão, para que as informações façam sentido dentro da lógica do texto.
Num exemplo, a jornalista mostrou a frase escrita por um repórter: “O Brasil é o país no mundo com o maior número de assassinatos de transexuais”. Após a revisão, a informação foi alterada para: “O Brasil tem um alto índice de morte de pessoas trans”. Segundo Marcella, a alteração, mesmo que pareça sutil, busca maior precisão, visto que não seria possível confirmar a primeira afirmação, que exigiria um processo complexo de investigação e de contagem de dados por diversas instituições globais, como a ONU.
A etapa garante a qualidade e a veracidade da notícia, que devem ser o alicerce do jornalismo.
“A precisão sempre vai tornar o texto melhor. Embora no processo possa parecer que estamos derrubando frases lindas e maravilhosas, no final o resultado fica melhor. E o mais importante: é um texto em que podemos confiar. A Piauí é feita para o longo prazo, é possível consumi-la no mês que saiu ou daqui a alguns anos; há confiança de que é uma informação acertada”, disse.
Mas as reações de repórteres à série de sugestões ou mudanças são variadas: uns debatem e refutam as correções; outros pedem mil desculpas; e ainda há os que amam e agradecem pelo trabalho. João Felipe Carvalho, que chegou à equipe em 2020, como estagiário, complementou que a checagem exige ceticismo: “O segredo é esquecer que você está jogando junto com um repórter, por mais relevante que ele seja, para que você não caia no ponto de confiar nele por causa da sua trajetória. Você vai ter que checar e duvidar do mesmo jeito”, comentou.
Porcidônio, repórter e checador do site e do podcast Foro de Teresina desde janeiro de 2024, busca asserenar ânimos: “Eu digo ao repórter: ‘Tô contigo, calma’”. Mas garante checar textos de profissionais com 30 anos de jornalismo da mesma forma que checa os de quem tem 30 dias. “É a mesma coisa”, comentou Porcidônio.
A checagem dos áudios dos podcasts pode levar à regravação de trechos ou do programa inteiro, como contou o checador Gilberto Porcidônio: “Podcasts são complexos. Eu não vou atrapalhar o fluxo deles, para não acabar com a energia daquele momento, da espontaneidade que é o podcast. Então, (revisar) é ter um carinho com um trabalho que todo mundo faz”.
Em checagens de obras ficcionais podem surgir casos ainda mais específicos. “Checamos um conto sobre uma onça que senta ao lado de uma moça. Você já assume que é uma situação irreal. Mas tem uma hora que a onça está no lado esquerdo da moça e, depois, aparece do lado direito. Houve também uma questão gráfica com uma vírgula, numa história em quadrinhos, que parecia um acento, por conta da diagramação da fonte. Isso tudo precisa ser checado”, apontou João Felipe.
A verificação detalhada dos conteúdos ganha ainda mais relevância conforme avança o uso da Inteligência Artificial. “O Google tem apostado numa ferramenta perigosa, que elabora uma resposta para a pergunta feita e evidencia apenas links que corroborem com a explicação. Porém, você tem que desconfiar de tudo e formar uma boa base para chegar ao veredito” alertou João Felipe.