por João Marcello Santos
Coube a Marco Antonio Rocha elaborar um roteiro capaz de explicar o que muitos não puderam ver ou escutar. Os registros em vídeo eram raros em 1948, quando o Vasco da Gama se sagrou o primeiro campeão sul-americano de futebol. Mais cruel ainda foi quando um incêndio na Rádio Mayrink Veiga destruiu as fitas com as narrações da época. Ainda há, porém, testemunhas do Expresso da Vitória – para muitos, a maior escalação da história do clube cruzmaltino. Em “A Força do Gigante”, luxuosos depoimentos contam sobre o voo vascaíno até o topo do continente. Um voo como o de um condor, ave-símbolo da América do Sul: imponente, absoluto e majestoso.
A história começa mais precisamente em 1923. Já nos primeiros minutos do documentário dimensiona-se o pioneirismo e o espírito de luta do Vasco da Gama, o único dos chamados quatro grandes com origem na Zona Norte do Rio. Com um elenco formado majoritariamente por atletas negros, de origem humilde e operária, na contramão do elitismo predominante nos outros times, os cruzmaltinos encontraram resistência por parte da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), sob a afirmativa de que a inserção daqueles jogadores contrariaria as normas do campeonato estadual. Naquele ano, os Camisas Negras conquistaram o primeiro título carioca da história do Vasco, motivo de orgulho para a torcida e de justas homenagens até hoje.
Em 1924, ocorreu uma cisão que resultou na criação de uma outra liga, a Amea (Associação Metropolitana de Esportes Athleticos). O elenco recém-campeão, que desafiou as convenções esportivas e sociais vigentes, foi obrigado a se reconstruir. Foi exigido que o clube excluísse 12 jogadores, 7 do primeiro quadro e 5 do segundo, pois supostamente estavam em “desacordo com os princípios morais” para a prática do futebol. Era a elite numa tentativa preconceituosa e racista de frear um time formado por atores sociais incomuns no esporte da época. A resposta foi redigida num ofício, que veio a se tornar objeto histórico, o qual defendia, sumariamente, o direito dos atletas do Vasco da Gama e um futebol democrático e popular. Um caso especial, em que um pedaço de papel vale bem mais do que uma escultura de bronze.
Antes mesmo de mergulhar no Sul-Americano de 1948, o documentário enfatiza as marcas de pertencimento e identidade vascaínas forjadas a partir de histórias como essa. Marcas fortalecidas, também, por aquele que por um bom tempo foi o maior estádio de futebol da América Latina: São Januário, erguido em 1927 por mãos, braços e corações cruzmaltinos, é uma extensão de lares há gerações. A nova cancha do Vasco foi uma condição imposta pela Amea para o clube voltar a disputar os campeonatos com as outras agremiações elitizadas. Ergueu-se mais do que um lugar para a prática do futebol, mas um espaço social e político de proporções nacionais. Getúlio Vargas, por exemplo, transformava frequentemente a arquibancada num púlpito. Um “monumento”, como sugere Sérgio Cabral, “construído com o suor e a luta do povo”, reforça Antônio Pitanga.
O clube, que já contava com nomes imortais como Nelson da Conceição e Negrito, abriu espaço para Barbosa, Friaça, Danillo, Ademir e cia. O Expresso da Vitória de 1948 conquistou a América do Sul, e o locutor Oduvaldo Cozzi narrou tudo pela Rádio Mayrink Veiga. Não se contava, porém, com um incêndio na sede que queimou todas as fitas de narração. Como, então, transmitir a emoção daqueles jogos de maneira fidedigna a quem não pôde testemunhar o Expresso?
Marco Antonio chegou a Evaldo José, que tem uma locução inclinada à moda antiga, e lhe atribuiu a tarefa de narrar os lances marcantes da campanha do Vasco no Campeonato Sul-Americano. No documentário, o botafoguense Evaldo gritou os goals do scratch cruzmaltino, que contagiaram o menino que acompanhava seu time pelo rádio. Como contagiaram, outrora, Martinho da Vila, Áurea Martins, Antonio Pitanga, Sérgio Cabral, Jaguar e Paulinho da Viola. Este último tinha Ademir Menezes como peça fundamental do time de botão, como confidenciou ao ídolo no camarim após um show.
Defronte ao rádio, não restava a esses e outros tantos torcedores o exercício da imaginação. Eram subjetivas as imagens, por exemplo, do chute de Lelé na estreia contra o Litoral Cochabamba, da entrada forte em Ademir que lhe custou sua permanência no campeonato e da bola no ângulo de Ismael contra o Emelec. Nas frequências radiofônicas, um milhão de cenários projetados por várias pessoas.
Quando o “campo e bola” já não é mais suficiente, percebe-se a potência da identidade, do pertencimento e da memória na relação entre o torcedor e o seu clube do coração. Para além das vitórias e derrotas corriqueiras, as discussões técnicas e táticas, as gozações e a turbulência dos noventa minutos, existem imagens, personagens e folclores imortais. Talvez o caso do Vasco seja um dos mais categóricos nesse sentido, haja vista as crises esportivas e políticas recentes. O arsenal histórico faz o torcedor reconhecer-se em meio à dor da derrota.
Moacyr Barbosa, um infinito na história vascaína, é um dos mais celebrados do Expresso da Vitória. Aquele que, de acordo com a filha, jamais carregou a cruz do calvário pelo Maracanaço de 1950, mas a Cruz de Malta, o seu maior orgulho. Tão bom quanto emblemático, Barbosa é referência nas discussões sociais, políticas e antropológicas sobre o futebol. Ao final do documentário, o mural pintado nas imediações de São Januário, pelo rubro-negro Pedro Rajão, não deixa dúvidas de seu tamanho.
Em contrapartida à escassez de registros mais completos da conquista de 1948, a abundância de recursos audiovisuais permite que a memória histórica e afetiva do futebol faça valer a sua importância. “A Força do Gigante”, por exemplo, está disponível gratuitamente no canal do Museu da Torcida Vascaína. Conteúdos como este, em que futebol, história, política, sociedade, cultura e subjetividade se confundem, são ferramentas poderosas contra a desinformação, o revisionismo e as análises rasas e reducionistas. Por isso, a produção de Marco Antonio Rocha é potente e necessária. Digna de vários “casaca!”.
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